8 de outubro de 2014

Por que Bento XVI espionou Padre Marcelo



Com batina e de microfone em punho, agitando o próprio corpo e o de uma multidão de fiéis, embalados por música dançante e coreografias animadas, padre Marcelo Rossi, da arquidiocese de Santo Amaro, em São Paulo, imprimiu ritmo às modorrentas missas católicas a partir do final dos anos 1990 e assim galgou o pedestal da fama. Em nome da evangelização do povo, o sacerdote cantor se tornou onipresente em programas de auditório e se transformou no artista cristão mais bem-sucedido da América Latina – amparado pela venda de milhões de exemplares de CDs, DVDs e livros. Padre Marcelo, porém, nunca gozou de prestígio entre a alta cúpula da Igreja Católica, em Roma. No ano em que comemora o 20º aniversário de sua ordenação, ganhou de presente a indigesta notícia de que fora alvo, durante quase uma década, de uma espionagem do Vaticano, mais precisamente da Congregação para a Doutrina da Fé, órgão responsável por vigiar a retidão da doutrina cristã pelo mundo. O responsável pela investigação teria sido o papa Bento XVI – na época ainda cardeal Joseph Ratzinger, o prefeito dessa poderosa instituição, espécie de ministério da Santa Sé (leia quadro). Caso fosse mal avaliado por seus observadores romanos, o sacerdote brasileiro poderia ser impedido de rezar missas e celebrar a comunhão, além de ser obrigado a aposentar sua porção popstar e tudo o que advinha dela – produtos comerciais e a exposição acentuada em meios de comunicação.Alertado sobre a existência de missas-espetáculo, culto ao personalismo e vulgarização da liturgia, o Vaticano investigou durante anos o sacerdote mais famoso da América Latina, por temer um cisma dentro da Igreja Católica do País
Vale lembrar que, em meados dos anos 90, a manifestação de uma espiritualidade mais efusiva, como a presenciada na Renovação Carismática Cristã, da qual padre Marcelo é simpatizante, causava arrepios nas autoridades da Igreja. No Brasil, a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) chegou a publicar um documento para disciplinar a atividade. Assim, após Rossi ser acusado por um de seus pares brasileiros, cuja identidade foi mantida em sigilo, de vulgarizar a liturgia, dar ares de espetáculo às missas e fazer culto ao personalismo, o Vaticano acionou a sua Congregação para investigar se a sua ovelha estaria atravessando a cerca, justamente num dos solos mais férteis do catolicismo mundial. “O padre Marcelo se tornou o personagem principal na diocese de Santo Amaro, que fora uma subdivisão da antiga Arquidiocese de São Paulo, e servia de escada para o bispo dele (dom Fernando Figueiredo). É assim até hoje. E isso causava, no mínimo, um estranhamento”, afirma José Reginaldo Prandi, uma das maiores autoridades do País em sociologia da religião e professor sênior da Universidade de São Paulo (USP).

ENCONTRO
Depois de se recusar a receber padre Marcelo quando esteve no Brasil, em 2007, o papa Bento XVI entregou pessoalmente ao brasileiro o prêmio de Evangelizador Moderno, em 2010, no Vaticano
Para André Ricardo de Souza, autor de “Igreja in Concert: Padres Cantores, Mídia e Marketing” e professor do departamento de sociologia da Universidade Federal de São Carlos (Ufscar), a investigação teve como alvo não só o padre Marcelo, mas também dom Fernando, uma vez que o bispo deu o aval para a conotação midiática e a exploração comercial da fé em sua diocese. “Se ele permitia esse ritual, era suspeito também para o Vaticano”, diz. O receio da Santa Sé, na opinião de Souza, era que um cisma surgisse no seio do catolicismo brasileiro. “Desde a Reforma Protestante, quando um clérigo ganha muita projeção, a Igreja se preocupa com a possibilidade de ele desencadear uma dissidência”, afirma. “Então, preocupava, sim, que em Santo Amaro pudesse surgir uma vertente da Igreja Católica.” Procuradas, a Nunciatura Apostólica, espécie de embaixada do Vaticano no Brasil, e a CNBB não quiseram se pronunciar sobre o assunto.

Grande mentor da Teologia da Libertação, movimento que interpreta o Evangelho à luz das questões sociais, o teólogo Leonardo Boff foi observado e punido pelo mesmo Joseph Ratzinger e sua Congregação para a Doutrina da Fé. Forçado a um silêncio obsequioso que culminou com a sua saída da ordem franciscana, em 1992, Boff não quis tecer comentários sobre alguém que, como ele, fora alvo de investigação do órgão católico. Apenas afirmou: “A inveja dos clérigos é a pior que existe. Roma não admite alguém que lhe faça alguma sombra.” Para o teólogo Jorge Claudio Ribeiro, da Pontifícia Universidade Católica (PUC), de São Paulo, o que mais choca é o silêncio que envolve esse episódio. “Ninguém sabe, ninguém comenta, não se sabe quem denunciou... Não gosto do estilo do padre Marcelo, mas ele não foi e nem está sendo tratado condignamente.

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