O Monte de Saint-Michel é sem dúvida a expressão de um Centro Cósmico no mapa gnoseológico de França para os estudiosos da Tradição Primordial, os quais chegam a situar aí a “cabeça” espiritual de França, dispondo o seu “coração” em Paris, a “cidade-luz”, e o “ventre” em Lyon, a cidade eleita pelos ocultistas dos últimos três séculos para fundarem e propagarem os seus movimentos e ideias esotéricas para toda a França, Europa e até o Mundo, como foi o caso da famosa Maçonaria Egípcia de Cagliostro (século XVIII), iniciada nessa cidade no sul do país.
Fazendo fronteira da Normandia com a Bretanha, na embocadura do rio Couesnon, no departamento da Mancha, desde muito cedo (século IV-V) esta ilhota rochosa foi consagrada a Saint-Michel e Notre-Dame Sous-Terra, “debaixo da Terra”, portanto, subterrânea. Inicialmente habitada por druidas ou sacerdotes da religião céltica que chamaram ao local Monte Tombe, da palavra celta tun, significando “elevação”, mas que depois os eremitas cristãos usando do latim converteriam em tumba, ou seja, a “tumba ou sepulcro”, contudo prevalecendo até hoje a raiz do filólogo original celta por que se conhece esta ilha de Tombelaine ou o Monte Dol, a ver com dólmen, o “jazigo funerário” dos antigos celtas.
No princípio do século VIII o Arcanjo São Miguel apareceu em sonhos a Aubert, bispo de Avranches, cidade próxima do Monte, e ordenou-lhe que construísse um mosteiro nessa ilhota granítica. Ele assim fez, depois das provas de veracidade que pediu ao Ser divino e este lhe deu, desde tocar com o seu dedo o crânio do religioso incrédulo, significando que lhe transmitiu a iluminação espiritual, até descobrir-se um touro roubado no alto da ilhota, como lhe predissera o Arcanjo, mas que é alegoria de uma nova religião, cristã, substituir a primitiva celta representada no touro “roubado”, animal totémico dessa primitiva sociedade agrária. Após, em 16 de Outubro de 708 consagrou ao Arcanjo de Deus o recém fundado mosteiro beneditino no Monte da sua evocação, originalmente chamado “Monte Saint-Michel em perigo do mar” (Mons Sancti Michaeli in periculo mari), epíteto dando a entender que seria sobretudo evocado por alguma confraria piscatória local.
Esse mosteiro recebeu reformas românicas nos séculos XI-XII e em sua volta nasceu uma pequena cidade fortificada, a que se dá o nome convencional de “bastide”, e no século XIII recebeu a influência magnífica do gótico a ponto de até ao presente chamar-se a esta construção a “Maravilha”.
No cimo do pináculo mais elevado do mosteiro, cerca de 80 metros de altura, destaca-se a estátua dourada do Arcanjo São Miguel elevando na destra a espada e tendo aos pés o dragão, aparentemente representativo da heresia, realmente expressivo do tellos-draconis latino ou wouifre em celta, que é dizer, as energia telúricas correndo no seio da Terra mantendo a vida nesta, tal qual as veias no corpo humano são os condutos do sangue vital à sobrevivência orgâni
O Arcanjo Miguel ou Mikael vem a ser Metraton, “a medida (meta, metra) perpendicular da Terra ao Sol (Aton)”, pelo que é o intermediário entre o próprio Eterno e a Humanidade mortal. Este facto regista-se em alguns pormenores da estátua alada do Ser sobrenatural: a sua espada erguida em perpendicular ao corpo; a ponta bainha da arma tocando a cauda do dragão, designando a função intermediária ou psicopompa; finalmente a rodela céltica apontando para baixo, simbólica do Sol que alumia a Terra, justificação reforçada pela cor dourada ou solar do conjunto com o Arcanjo dardejando raios de luz de sua cabeça, auréola esta decerto inspirada na primitiva iconografia mitraica, a do deus solar Mitra que o igualmente solar Cristo substituiu pela adopção católica dos primitivos símbolos daquele.
Se Mikael ou Miguel é quem liga a Terra ao Céu, essa assinala-se neste lugar na cripta românica de Nossa Senhora Subterrânea, ligada aos primitivos cultos ctónicos dos celtas e primeiros cristãos eremitas daqui, a qual é consignada na Cabala judaica Shekinah, a “Presença Real de Deus” na Terra, tradicionalmente assumida como aspecto feminino da Divindade, e é assim que se liga às águas, à mulher, à Mãe Divina associada ao próprio Espírito Santo. Já Miguel representa o aspecto masculino da Divindade, a terra, o homem, o Pai Eterno. Terra e água são, com efeito, os elementos predominantes que dão o dom de “Maravilha” a este Mons Saint-Michaeli.
Vários indícios apontam este mosteiro beneditino como importante centro espiritual, talvez o mais importante de toda a França medieval dos primeiros tempos do cristianismo europeu. É aqui que entra a doutrina oculta da Shekinah para os hebreus, ou Sakinah para os árabes, tendo o seu principal ponto de referência no Antigo Testamento, nas passagens onde se trata da instituição de um centro religioso e espiritual: a construção do Tabernáculo, a edificação dos Templos de Salomão e de Zorobabel. Tal centro, constituído em condições regularmente definidas, devia ser efectivamente o lugar da Manifestação Divina, da “Presença Real de Deus”, Shekinah, sempre representada como “Luz” tornando o lugar da sua implementação verdadeiro Centro Cósmico na Terra, “cabeça” original da Fé que vai expandir-se a outras partes. Foi precisamente isso que aconteceu aqui no Monte Saint-Michel, em cuja Shekinah está a causa da Influência Espiritual presidindo a todas as modalidades de Iniciação e Iluminação. Ainda que a Igreja Cristã lhe chame Bênção, o sentido exacto é Influência Espiritual, como se traduz no termo hebraico original, berakoth, e no árabe barakah.
Tão importante era este centro religioso e espiritual que ficaram célebres as peregrinationes michaelis para ele durante a Idade Média: os peregrinos proviam-se de um bordão de madeira com um nó no centro e um cajado curvo no extremo, carregavam um alforge de couro, vestiam uma capa vermelha chamada pelerina, e por alguma das cinco rotas principais chegavam ao Monte. Seguiam pelos montais ou “caminhos do Paraíso”. Chegado à meta, diante de São Miguel no altar-mor da igreja, quase sempre o peregrino fazia-lhe uma oferta: uma concha de molusco ou uma insígnia de peregrinação; estes objectos de pano ou estanho coziam-se na roupa e representavam o Arcanjo.
Texto colhido no blog http://historias-de-minha-vida.blogspot.com/2009/03/