15 de agosto de 2012

Madame Bovary, arsênico e Inglaterra

Na década de 1840, um excessivo número de casos de morte por envenenamento chamou a atenção das autoridades inglesas. Essa é a história de como o arsênico pode ser conhecido como o principal veneno da era vitoriana. A descrição da cena do suicídio de Emma Bovary, que ingeriu arsênico num último ato de desespero, talvez seja uma das mais fortes da literatura. Não por acaso Flaubert, o autor do livro "Madamme Bovary", tinha esmero ao criar sua obra tanto que a sua busca pela palavra perfeita (la mot just) o fizesse escrever e reescrever um livro durante anos. Este livro levou cinco anos para ser escrito. Vejamos partes da cena referida:
"A chave girou na fechadura e ela foi diretamente à terceira prateleira, tal a exatidão com que a memória a guiava, agarrou no frasco azul, arrancou-lhe a tampa, meteu-lhe a mão e, retirando-a cheia de um pó branco, pôs-se a comê-lo diretamente.
(…)
"Oh! A morte é uma coisa insignificante!", pensava ela, "vou adormecer e estará tudo acabado!"
  Bebeu um gole de água e voltou-se para a parede.
Aquele horrível gosto a tinta persistia.
- Tenho sede!… Tenho muita sede! – suspirou ela.
(…)
Veio-lhe um vômito tão repentino, que mal teve tempo para agarrar o lenço debaixo do travesseiro.
- Leva-o! – disse precipitadamente. – Jogue-o fora!
(…)
Então ele, delicadamente e quase acariciando-a, passou-lhe a mão sobre o estômago. Emma soltou um grito agudo. Charles recuou, aterrado.
(…)
Surgiram-lhe gotas de suor espalhadas pelo rosto azulado que, entorpecido, parecia exalar um vapor metálico. Batia os dentes, com os olhos dilatados olhava vagamente em torno, e só respondia a todas as perguntas abanando a cabeça, chegou a sorrir duas ou três vezes. Pouco a pouco, os gemidos foram-se tornando mais fortes. Deixou escapar um uivo surdo, disse que estava melhor e que dali a pouco se levantaria. Mas entrou em convulsões e exclamou:
- Ah! É atroz, meu Deus!"
Alguns anos antes do lançamento do livro, em plena Inglaterra vitoriana, houve um surto de mortes misteriosas que, posteriormente, descobriu-se ser por envenenamento provocado pela ingestão de arsênico, que podemos exemplificar no velho chavão: "a diferença entre o remédio e o veneno é apenas a dose". Pois, até antes do surgimento dos antibióticos, o arsênico era prescrito para o tratamento de algumas doenças. Darwin, por exemplo, o utilizava para tratar de um eczema. Alguns pesquisadores desconfiam que o país sofria, de um modo geral, de dispepsia. O detalhe macabro está relacionado a um, digamos, modismo que surgiu entre as mulheres de Essex que, na década de 1840, que levaram a insatisfação com o casamento e também motivos econômicos (seguro de vida de crianças) a se livrarem dos maridos e filhos.

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"É insolúvel em água, porém muitos de seus compostos são solúveis. É um elemento químico essencial para a vida, ainda que tanto o arsênio como seus compostos sejam extremamente venenosos."
A quase impossibilidade de detecção do envenenamento não caracterizava a morte de um cônjuge por assassinato. Os sintomas eram parecidos com os da gastrite ou alguma infecção estomacal. Era, em princípio vendido livremente em farmácias – como remédio – e mercearias – veneno para ratos -. Seu aspecto, quando se tratava do arsênico branco, era muito parecido com o do açúcar, farinha ou fermento em pó. Logo, para que algumas ideias de jerico surgissem e colocassem o pozinho na comida ou nas bebidas não demorou muito. Imagino que todos devam se lembrar de filmes em que, antes de um banquete entre convivas de uma corte qualquer, um deles, o vilão, abria a tampa de um anel e de seu interior despejava o tal pozinho na taça de vinho de sua(s) vítima(s). A utilização desse expediente foi tão intenso que, James C. Worthon, autor do livro The Arsenic Century, que foi resenhado por John Carey, no artigo "The Arsenic Century: How Victorian Britain Was Poisoned at Home, Work and Play by James C Whorton", do jornal Times Online, imagina que a cidade de Essex parecia com a Itália dos Bórgias – O papa Alexandre VI e seus filhos César e Lucrécia -.
O elemento arsênio (As) era largamente utilizado pelas indústrias de tintas, vernizes e cosméticos. Além de também constar na composição de produtos como o vinho, cigarro, velas, papel e até mesmo num "avô" do Viagra do tipo pílulas para a virilidade. Imaginemos, então, o quanto as pessoas se envenenavam lentamente quando precisavam dar umazinha. A ironia do arsênico é que ele está nos produtos que proporcionam algum prazer e levam, ao cabo de alguns anos, à morte. Preocupante, não?
Voltando ao detalhe macabro, a Inglaterra de meados do século XIX, apesar de ser considerada o Império em que o Sol nunca se põe, era um país cuja pobreza da população pode ser considerada aos moldes de alguns países africanos da atualidade. Doenças, promiscuidade, falta de higiene e outros males afligiam a sociedade. Criou-se, então, uma prática que envolvia envenenamento por arsênico e apólices de seguro. Muitas mulheres, preferindo salvar alguns trocados que receberiam a título de seguro de vida pela morte do marido, passaram a discutir abertamente entre si algumas maneiras de eliminar o indesejado e ainda ganhar dinheiro dessa forma, como conta James C. Worthon.
A Justiça não perdia tempo investigando ou julgando casos suspeitos até que uma afoita errou na dose e colocou arsênico demais no prato de arroz que servira ao marido. Foi julgada e condenada. A partir de então as autoridades passaram a ficar mais atentas; porém, mesmo assim, muitas mulheres continuaram praticando este ato macabro só que em seus próprios filhos, sobrinhos, enteados e qualquer outra criança que estivesse ao seu alcance. O governo inglês garantia cerca de £5 , uma soma interessante na época, para custear o enterro de crianças pobres. Várias foram as mães que, para garantir a sobrevivência de alguns filhos, envenenava outros para receber o seguro. Há o caso de uma mulher, Mary Ann Cotton, uma professora que se tornou uma serial killer, ao assassinar, entre 1860 e 1873, sua mãe, três maridos, seu inquilino, que se tornara seu noivo e a maioria de seus 15 filhos e enteados.
Os assassinatos chamam a atenção, mas as mortes por envenenamento com arsênico se davam nas formas mais inusitadas. A indústria de papéis de parede foi responsável pela morte de quatro crianças de uma mesma família cujo quarto era coberto por papel de parede cuja fabricação empregava doses letais do elemento químico. Imagine, então, uma mulher belíssima finamente maquiada e espalhando arsênico entre seus parceiros de dança numa festa ou recepção. O que não dizer, portanto, da pigmentação usada para colorir os tecidos de seus vestidos de musselina verde? Como diz o autor do artigo, "espalhavam nuvens de poeira tóxica como helicópteros de pulverização de pesticidas". Um químico disse que "elas podem ser chamadas de criaturas de matar".
Portanto, cuidado com a mulher que estiver usando um vestido verde de musselina.
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Fontes de consulta:
Resenha do livro Madamme Bovarry
.-Rabisco – artigo: Mulher de fases do século XIX
-Revista e – artigo: A lei do desejo
-Flaubert, G – Madame Bovary. Tradução Fernanda Ferreira Graça. Editora Europa-América. Lisboa: 2000.


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